Por Leonardo Carvalho e Rafael Araújo

Em uma apresentação do TED chamada “Como o Blockchain está mudando o dinheiro e o mundo dos negócios”, o estrategista digital Don Tapscott classifica a tecnologia que permite a existência de criptomoedas como o Bitcoin como uma espécie de próximo passo na evolução da própria Internet.

Para ele, se nas suas primeiras fases a Internet foi usada como um meio de transmissão de conhecimento e informação, nesta nova fase a rede estaria se transformando em uma “Internet do Valor”, um meio de transferir valores (monetários ou não) sem depender do controle de bancos e outras instituições que, até hoje, foram as únicas controladoras e avalistas desse tipo de transação.

No cerne dessa “revolução” está a solução de um problema cuja complexidade é inversamente proporcional à facilidade com que ele pode ser compreendido: o duplo-gasto.

Imagine uma situação prosaica, em que você para em uma carrocinha de sorvete, escolhe o sabor de sua preferência e paga o sorveteiro com uma nota de dinheiro. Nesse momento, a nota deixa de estar sob sua posse e passa a ser do sorveteiro. Trata-se de uma transação simples, onde não há necessidade de um intermediário que diga que “a nota não é mais sua, é do sorveteiro”. No caso de uma compra no e-commerce, há a necessidade de um terceiro confiável — no caso, o sistema financeiro — que valide a transação de modo a evitar que o comprador gaste o mesmo valor mais de uma vez em transações diferentes, ou seja, o duplo gasto.

No Halloween de 2008, foi publicado um artigo propondo a criação do Bitcoin, um sistema de dinheiro eletrônico que pudesse ser trocado diretamente entre pessoas, sem necessitar de intermediários. O Bitcoin se propunha, em resumo, uma alternativa ao sistema financeiro vigente. Para resolver o problema do duplo-gasto, o artigo propunha a criação de uma plataforma descentralizada (ou seja, que não pertence a ninguém), através da qual as transações envolvendo Bitcoins são auditadas pelos próprios participantes através de um processo lucrativo chamado mineração.

Mineração é uma forma da rede Bitcoin entrar em consenso sobre as transações realizadas. Isso se dá através da solução de um cálculo matemático complexo pelo minerador que, posteriormente, passa pela conferência de toda a rede até ter a sua solução validada e salva em um registro público de transações chamado blockchain.

Nos primeiros anos da “experiência” Bitcoin a sua mineração era algo ao alcance de qualquer pessoa, podendo ser realizada inclusive em boa parte dos computadores domésticos disponíveis na época; no entanto a sua popularização e consequente valorização tornaram o processo computacionalmente mais custoso, tanto em termos de necessidades de equipamento quanto em consumo de energia. Entram em cena as máquinas mineradoras que, aos poucos foram substituindo os computadores na atividade de mineração, aumentando a capacidade de processamento. Nos últimos anos, os mineradores investiram pesado na aquisição destas máquinas, juntando elas em grandes data centers, para potencializar seus lucros e, ao mesmo tempo, aumentando o consumo de energia.

É esse aumento que tem gerado preocupações sobre as consequências da mineração de bitcoins (e outras criptomoedas) no consumo global de eletricidade.

As questões são: há motivo para esta preocupação? E principalmente: existem dados suficientes para chegar a qualquer conclusão?

Questão energética faz países e empresas se posicionarem sobre mineração

Duas notícias do começo deste ano dão um panorama da crescente atenção com o consumo global de energia em um cenário de aumento nas atividades de mineração de criptomoedas.

No começo do mês de fevereiro, uma das maiores produtoras de energia elétrica da Europa — a italiana Enel — declarou não ter “nenhum interesse em fornecer energia para empresas de mineração de criptomoedas”. Em uma nota divulgada pela agência Reuters, representantes da empresa — que estava em negociação para fornecer energia de fontes renováveis para a empresa suíça de criptomineração Envion AG — afirmaram ter tomado a decisão após uma série de análises e estudos cuidadosos.

“A Enel (…) vê o uso intensivo de energia dedicado à mineração de criptomoedas como uma prática insustentável, que não se adequa ao modelo de negócios que a companhia está buscando”.

Pouco depois, no dia 13 de fevereiro, um artigo no jornal The Washington Post afirmou que o consumo de energia por empresas de mineração de criptomoedas na Islândia está crescendo tanto que, até o fim do ano, deve superar o consumo de energia dos seus 340 mil cidadãos.

A causa deste crescimento? Energia limpa e barata. O país, localizado no extremo norte do continente europeu, é rico em energia geotermal, gerada a partir de vulcões. Além disso, as baixas temperaturas trazidas pelo ar gelado que vem do Ártico reduzem a necessidade de grandes investimentos em sistemas de refrigeração, necessários para manter as máquinas de mineração funcionando. Combinados, estes dois fatores transformaram a Islândia no destino de preferência de empresas envolvidas nesta atividade. “Cinco anos atrás falava-se muito na instalação de data centers por aqui. Mas nos últimos seis meses o interesse atingiu um pico. Estamos recebendo um telefonema por dia de empresas estrangeiras interessadas em se instalar aqui”, afirmou Johann Snorri Sigurbergsson, representante da empresa de energia HS Orka, ao Washington Post. “Se todos esses projetos se concretizarem, não teremos energia suficiente”, completou.

Em ambos os casos, o consumo de energia é longe de desprezível, mas teria realmente potencial catastrófico?

Estatísticas apontam risco real de desabastecimento

Dados divulgados pelo site Digiconomist — criado em 2014 pelo consultor financeiro Alex de Vries como uma “plataforma para análises em profundidade (…) relacionadas ao Bitcoin e outras criptomoedas” — apontam um cenário “alarmante” para o consumo de energia relacionado especificamente à mineração do Bitcoin.

Segundo números de novembro de 2017, o consumo anual de eletricidade para minerar esta única criptomoeda era estimado em 29.05 TWh (Terawatts / hora), quantidade equivalente a 0,13% do consumo global total de eletricidade, comparável ao consumo de 159 países tomados de maneira isolada. Ainda segundo o site, a taxa de crescimento no consumo de energia relacionado à mineração de criptomoedas atingiu quase 30% entre os meses de dezembro/2017 e janeiro/2018.

Consumo de energia por mineradoras de Bitcoin X Consumo de energia por país / Imagem: Digiconomist

Extrapolando os dados do Digiconomist, outro site — o britânico Powercompare — alerta que, a se manter esta taxa, a mineração de Bitcoin poderá consumir o equivalente a toda a energia elétrica produzida no mundo atualmente até 2020.

Uma outra análise, produzida pelo banco Credit Suisse e também restrita ao Bitcoin, considera que conforme o valor atribuído à moeda sobe, novos investidores serão atraídos e, consequentemente, a quantidade de energia despendida para minerá-la aumentará. O banco estima que, caso o Bitcoin atingisse o patamar dos US$ 50 mil, o consumo de energia usada na sua mineração seria multiplicado por 10. Se, hipoteticamente, fosse amplamente adotado a ponto de atingir uma cotação de US$ 1,1 mi, “seria lucrativo o suficiente para usar quase toda a eletricidade gerada atualmente no mundo”.

Não são poucos, no entanto, que entendem haver equívocos e exageros nestas estimativas

Especialistas consideram dados do Digiconomist “insuficientes”

Um artigo publicado em dezembro do ano passado no site da rede de notícias norte-americana CNBC pede cautela na interpretação dos números apresentados pelo Digiconomist e critica sua rápida aceitação por parte de jornalistas, empresas de mídia e analistas de mercado.

Segundo o artigo, “não há dúvidas de que há uma questão de eficiência no processo de mineração (…) mas estamos aprendendo que as estimativas de consumo [apresentadas pelo Digiconomist] podem ser falhas, e têm sido usadas para fazer suposições de extrapolação extremas, vistas no passado sempre que surgem novas tecnologias”.

Uma série de especialistas em energia ouvidos pela CNBC concordam que “não há atualmente um meio confiável de medir quanta energia é consumida no processo de mineração de criptomoedas”.

Christian Catalini, professor assistente da Sloan School of Management do MIT e estudioso de criptomoedas e da tecnologia blockchain é um desses especialistas. Segundo ele, para medir esse consumo, seria necessário coletar dados de data centers, o que ninguém fez até o momento: “eu não acredito que seja possível fazer qualquer afirmação sobre o uso de eletricidade para mineração de bitcoins sem considerar os dados das próprias mineradoras”, afirmou.

Já o especialista sênior em sustentabilidade da Ericsson Research, Jens Malmodin, considera temerário apontar — como fez o Digiconomist — que o consumo de energia pelas mineradoras de bitcoin é aproximadamente o dobro do consumo de Google, Microsoft, Facebook, Amazon e Apple combinadas. Para ele, “esse número simplesmente não é realista”.

Novas tecnologias e equilíbrio no consumo

Um outro estudioso do assunto ouvido pela CNBC foi o conferencista da Universidade de Stanford, James Koomey. Veterano no tema do consumo de energia por novas tecnologias, Koomey fez parte de um time de pesquisadores que desmentiu projeções alarmantes sobre o consumo de energia da Internet, em meados dos anos 1990.

Na época, assim como no caso do Powercompare, cometeu-se um erro clássico, segundo o conferencista: “eles fazem uma projeção das altas taxas de crescimento associadas com uma nova tecnologia no futuro, o que resulta em uma previsão de demanda de arregalar os olhos”. E lembra: “projeções similares foram feitas sobre o tráfego de dados da Internet e sobre o uso de eletricidade por computadores nos escritórios e por dispositivos móveis. Conforme a escala no uso destas tecnologias cresceu, as taxas de consumo se mostraram mais moderadas”.

Outra questão que não é considerada nestas projeções é a evolução das tecnologias envolvidas diretamente na mineração.Tomaremos como exemplo duas gerações de uma mineradora: a Bitman Antminer.

Em sua versão S7 — lançada em meados de 2015 — , o consumo de energia era de 0.25 W/Gh (Watts por Gigahash). A versão S9, lançada dois anos depois, consumia 0.098 W/Gh. Concentrando apenas no consumo das próprias mineradoras, e sem considerar gastos de energia referente à refrigeração, houve uma melhoria de 250% na eficiência dos equipamentos.

Outra questão não considerada nestas projeções são soluções que podem vir a impactar indiretamente o consumo de energia.

Uma delas está relacionada aos já citados “métodos de consenso” que estão no próprio cerne da mineração. É possível afirmar que, quanto mais complexo o método de consenso para validar uma determinada transação, tanto maior será a energia computacional (e, consequentemente, elétrica) despendida na operação. É sabido que muitos pesquisadores vêm trabalhando em novos métodos de consenso mais eficientes que, caso adotados, podem vir a reduzir o consumo.

Uma segunda solução, indireta, é o desenvolvimento criativo de tecnologias que tornam o consumo mais eficiente, sem impactar diretamente na mineração

No Canadá, um empreendedor chamado Bruce Hardy encontrou uma maneira de reciclar o calor gerado pelos equipamentos de mineração para produzir vegetais e até peixes. Hardy possui 30 plataformas de mineração distribuídas em pouco mais de 1800 metros quadrados. O calor gerado pelas plataformas circula pelo ambiente, aquecendo estufas com as plantas e tanques de peixes. Hardy, que minera bitcoins há 2 anos, investiu inicialmente em sistemas de refrigeração para os equipamentos até perceber que o calor poderia ser dissipado e usado na agricultura.

Se por um lado a tendência de crescimento na atividade de mineração e do consumo de energia são uma realidade, é de se esperar que a criatividade, quando não a própria evolução que torna tecnologias mais eficientes conforme seu uso ganha em escala, trarão novas soluções para a questão energética — da mesma forma como ocorreu em outros movimentos e tendências tecnológicas no passado.